VAZIO


Vazio d'alma - Lenita Jankovitz


A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

Augusto Frederico Schimitd
Publicado: Pássaro cego (1930)
Vazio em branco - Mila Thiele

Quando eu Morrer

Pablo Picasso - A mort de Casagemas

QUANDO EU MORRER

Quando eu morrer o mundo continuará o mesmo,
A doçura das tardes continuará a envolver as coisas todas.
Como as envolve agora neste instante.
O vento fresco dobrará as árvores esguias
E levantará as nuvens de poesia nas estradas...

Quando eu morrer as águas claras dos rios rolarão ainda,
Rolarão sempre, alvas de espuma
Quando eu morrer as estrelas não cessarão de acender-se
no lindo céu noturno,
E nos vergéis onde os pássaros cantam as frutas
continuarão a ser doces e boas.


Quando eu morrer os homens continuarão sempre os mesmos.
E hão de esquecer-se do meu caminho silencioso entre eles,
Quando eu morrer os prantos e as alegrias permanecerão
Todas as ânsias e inquietudes do mundo não se modificarão.
Quando eu morrer os prantos e as alegrias permanecerão.
Todas as ânsias e inquietudes do mundo não se modificarão.
Quando eu morrer a humanidade continuará a mesma.
Porque nada sou, nada conto e nada tenho.
Porque sou um grão de poeira perdido no infinito.


Sinto porém, agora, que o mundo sou eu mesmo
E que a sombra descerá por sobre o universo vazio de mim
Quando eu morrer..."
Augusto frederico Schmidt

SAUDADES


Ter saudade é viver
Não sei que vida é a minha
Que hoje só tenho saudades
De quando saudades tinha.

Passei longe pelo mundo
Sou o que o mundo seu fez,
Mas guardo na alma da alma
Minha alma de Português.

E o Português é saudades
Porque só as sente bem
Quem tem aquela palavra
Para dizer que tem.

Fernando Pessoa

A FOME E OS TRILHÕES

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De repente surgem bilhões, trilhões de dólares despejados no mercado financeiro para socorrer bolsas e bancos. Como disse Lya Luft em um artigo para a revista Veja, até pouco tempo atrás “bilhões e trilhões serviam para contar estrelas”.
Não há dinheiro para socorrer populações flageladas por guerras genocidas e desastres ecológicos. Para isso são precisas campanhas de doações, shows, apelos....criança esperança. A África sucumbe em guerras de extermínio, doenças fatais...fome. Boa parte de Ásia, Américas e Oceania idem. Nunca há dinheiro suficiente para saúde, educação, não há empregos suficientes, nem terras para todos. Milhões e milhões vivem abaixo da linha da pobreza, com menos de um dólar por dia e de repente surgem trilhões para socorrer financistas em apuros que aprontaram molecagens sonhando com lucros fáceis e gigantescos.


Se esses trilhões de dólares fossem usados para a educação, pesquisa e saneamento básico, que mundo maravilhoso teríamos. Mas seria dinheiro a fundo perdido dirão eles. O mais engraçado é que se isso ocorresse haveria um crescimento econômico sem precedentes na história da humanidade. Bilhões de seres humanos deixariam a margem da história e se tornariam produtivos e consumidores ampliando os mercados, bilhões de dólares deixariam de ser aplicados em aparatos policiais, guerras, tratamentos de epidemias e doenças. Os complexos penitenciários se reduziriam drasticamente, reservados apenas aos incorrigíveis. Pesquisas científicas se multiplicariam e haveria um gigantesco avanço tecnológico. A raça humana se reproduziria menos e com mais qualidade e haveria o tão sonhado progresso sustentável. Tudo isso dentro das regras do capitalismo, sem recorrer a ideologias ilusórias.

Mas a ganância e a mesquinhez limitam a visão humana. Somos todos vítimas de um sistema maquiavélico que nos sufoca. O mais impressionante é que temos consciência disso. Por que será que ignoramos uma imensa parcela da população do planeta, e quando a olhamos é para externar um pré-conceito que justifique o mundo como está? Por que será que achamos mais fácil e proveitoso o caminho da desigualdade, da extrema concentração de riqueza e da exploração selvagem do homem pelo homem?
Não é esse um tema interessante para analisar e discutir? Abro com este texto o espaço para essa discussão. Coloquem suas considerações em comentários abaixo.
BERNARDO UCHÔA
Diego Rivera – La Noche de los Pobres


NÃO É A FOME QUE MATA
É O TEMPO DA FOME QUE NOS VAI MATANDO
É O SILÊNCIO NA DESCULPA, DOS OUTROS
É A PELE DISTANTE, DOS OUTROS
A OUTRA VIDA QUE NÃO NOS PERTENCE

NÃO É A FOME QUE (NOS) MATA
À DISTÂNCIA DO SOFRIMENTO, DOS OUTROS
SÃO OS OUTROS, AQUELES QUE CARREGAM A FOME
A NECESSIDADE, DOS OUTROS
AQUELES QUE SÃO, OS OUTROS COM FOME
PEDINDO
OUTROS
OUTRO
OUTR
OUT
OU, OS (OUTROS)
(AQUILO DA FOME…)
poema de Eduardo Nascimento

REMORSO

Salvador Dali – Remorso

REMORSO
Às vezes, uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.

Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! Mais cem vidas! Com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando!

Sinto o que esperdicei na juventude;
Choro, neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude,

Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse!



Bilac, Olavo, 1865 – 1918
Antologia poética / Olavo Brás Martins Bilac
Porto Alegre: L&PM, 2007 pg. 83

MEMÓRIAS DA INFÂNCIA

Salvador Dali – Memorias da Infancia

MEMORIAS DA INFÂNCIA
Quando eu era criança, acreditava em muitas coisas. Acreditava, por exemplo, que todos os homens eram bons, exceto talvez o homem do saco... aquele negro que pegava crianças, como minha mãe dizia sempre que eu queria sair à rua para brincar.
- O Homem do saco vai te pegar!!!
Acreditava em Papai Noel, na cegonha que trouxe meu irmão, em duendes... Ah os duendes...e sobretudo acreditava na felicidade. Eu achava que sempre seria feliz.
Os problemas, esses eram simples e passageiros: dores de barriga, de garganta, que me fez sofrer um bocado, um ou outro ferimento provocado pelos tombos e as artes castigadas a chineladas.
A infância tinha odores. O cheiro das manhas úmidas e quentes, o cheiro da terra, do cachorro, da macarronada aos domingos. Esses cheiros ainda hoje me retornam à lembrança, como se eu ainda os sentisse.
Nunca fui chegado a bolinhas de gude ou a pipas, não conseguia pô-las no ar, por isso me afastei delas...ignorei-as simplesmente. Mas me lembro dos túneis na areia, túneis que se interligavam, me lembro das brincadeiras nas “ trincheiras” cavadas na rua onde colocaram depois os grandes canos de esgoto, mas enquanto não, foram palco de grandes batalhas infantis.
Como era gostoso olhar a chuva caindo através da janela... as águas formavam corredeiras que desciam a Rua D. Matilde abaixo.

Minha casa tinha um jardim, zelosamente cuidado por meu pai, onde predominava a grama inglesa e pés de buchinho e um quintal, mais tarde todo cimentado onde pinduca, um cachorro malhado que foi nossa companhia por 14 anos corria em volta alucinado quando meu pai chegava do trabalho.

À noite, quando minha mãe concedia em ler para mim, era um êxtase . Lembro-me das fábulas de Ezopo, mas , sobretudo, de Monteiro Lobato: Caçadas de Pedrinho era minha história predileta. Adorava ficar imaginando aqueles meninos metidos naquelas aventuras...a caça à onça pintada... os preparativos da expedição cuidadosamente planejados em seus detalhes instigavam minha curiosidade até o limite. Um gênio Monteiro Lobato. Mais tarde a adaptação de seus contos para a TV os popularizou, mas, por outro lado, retirou-lhe aquela magia que é o que há de mais sagrado na infância a capacidade de imaginar a história. Na TV tudo vem pronto, você não precisa imaginar nada. Tudo é fútil e artificial.

E os álbuns de figurinhas, quem não os teve? Não eram figurinhas inúteis de artistas ou jogadores de futebol. Lembro-me de um álbum sobre o sistema solar e as eras geográficas da terra. Eram figurinhas dos planetas, dos animais pré-históricos, figurinhas que imaginavam o ambiente terrestre a milhões de anos. Em uma página as figurinhas se combinavam compondo um enorme sistema solar completo com os planetas nas suas devidas proporções.
Lembro-me também das campanhas políticas. Numa delas meu pai trouxe para casa um quebra cabeças do mapa do Brasil. Na frente montava-se o mapa com todos os estados e capitais, no verso a figura do candidato ao senado, nunca esqueci seu nome, apesar de ser criança: Auro de Moura Andrade. Que diferença das campanhas porcas de hoje, das baixarias e mentiras sórdidas. Não que não houvesse isso naquela época, mas havia algo diferente. Éramos pobres, não tínhamos refrigerantes todo o dia, apenas aos domingos e nem todos. Alias que dias maravilhosos eram os domingos. Pelo rádio às tardes a voz de Fiori Giglioti ecoava em todas as casas

-Torcida brasileira.....calorosamente boa tarde.
- Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo.
E a narração esportiva tinha don de poesia nos momentos de bola parada que permitia comentários como:
-O Sol se esparrama sobre o verde do estádio torcedor do Brasil
E ao final da partida:
- Crepúsculo de jogo, fecham-se as cortinas e termina o espetáculo.
Não devíamos ter saudades do passado. Na realidade procuro fugir dele. Quando volto ao bairro em que cresci sinto uma angústia muito grande, um tristeza enorme. Nada restou...
O passado foi demolido...como um Cinema Paradiso, e o que ficou no lugar parece tão artificial, não me pertenço, ou melhor, eu não pertenço mais a aquele lugar. O tempo o tomou de mim, o tempo toma tudo de mim até que não satisfeito me levará também a vida.
O passado só ficou dentro de mim nas sensações guardadas na memória, na música que me trás de volta as impressões e o cheiro daquela época. Sinto falta da sensação de segurança (sei que era ilusória, mas acreditávamos) e da simplicidade daquele mundo (isto é verdadeiro) que ficou para trás Um mundo que sempre foi inquietante e perigoso, havia a guerra fria, mas para nós crianças, era um mundo maravilhoso. Oh! What a Wonderful World !

BERNARDO

Carolina


Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.


Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.


Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.


Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

Machado de Assis, 1906

CRÔNICAS SOBRE O TEMPO



De RUBEM ALVES

DESFIZ 75 ANOS

Minha formação filosófica impõe-me o uso preciso das palavras porque as palavras devem revelar o ser. E é assim, usando de forma precisa as palavras, comunico aos meus leitores que ontem, dia 15 de setembro, eu desfiz 75 anos...
Haverá leitores que se apressarão a corrigir meu uso estranho, nunca visto, da palavra "desfazer", atribuindo-o, quem sabe, a um início de mal de Alzheimer. Todo mundo sabe que, para se anunciar um aniversário, o certo é dizer "fiz" tantos anos. No meu caso, "fiz" 75 anos...
Mas o verbo fazer sugere algo que aumenta, um crescimento do ser, o artista e o artesão "fazem"...
Mas, que ser aumenta com a passagem do tempo, esse monstro que devora os seus filhos? O que aumenta é o vazio. Esses anos que o aniversariante distraído anuncia como anos que ele fez são, precisamente, os anos que ele desfez, o tempo que já passou, que deixou de ser, os anos que o tempo devorou.
Por isso acho um equívoco filosófico perguntar a alguém: "Quantos anos você tem?" O certo seria perguntar "quantos anos você não tem?" E Ela responderia "não tenho 42 anos" , "não tenho 28 anos" Porque esse número de anos indica precisamente os anos que ela não tem mais. Nos aniversários então a maneira correta de se dirigir ao aniversariante é perguntando-lhe "quantos anos você está desfazendo hoje?"
Com base nessas reflexões filosóficas acho extremamente estranho e mesmo de mau gosto esse costume de o aniversariante soprar as velinhas acessas para que elas se reduzam a um pavio negro retorcido. Aí, nesse momento, todos gritam e riem de alegria e cantam o "Parabéns pra você", em louvor a essa "data querida..."
Bachelart no seu delicadíssimo livro " A Chama de uma Vela" que nunca será best- seller, nos lembra que uma vela que queima é uma metáfora da existência humana. Há alguma coisa de trágico na vela que queima: para iluminar, ela tem que morrer um pouco. Por isso ela chora, e suas lágrimas escorrem sobre o seu corpo sob a forma de estrias de cera.
Uma vela que se apaga é uma vela que morre. Algumas velas se consomem todas, morrem de pé, têm que morrer porque a cera já se chorou toda. Outras morrem antes da hora - elas não queriam morrer -, mas veio o vento e a chama se foi.
As velinhas acessas fincadas no bolo não querem morrer. Elas vão ser assassinadas por um sopro. o sopro que apaga a vela é o sopro que apaga a vida...
por isso não entendo os risos, as palmas e a alegria que se segue ao sopro que apaga as velas. Uma vela que se apaga é um sol que se põe, disse Bachelart. E todo pôr-do-sol é triste... Uma vela que se apaga anuncia o crepúsculo.
Por isso eu prefiro um ritual diferente, ritual que é uma invocação. Eu acendo uma vela pedindo aos deuses que me dêem muitos anos a mais de vida, esses anos que se seguirão, que são o único tempo que realmente possuo...
Assim fiz, acendi uma vela, meus amigos à minha volta. Que coisa boa é ter amigos, especialmente quando o crepúsculo e a noite se anunciam!
Acho que a vida humana não se mede nem por batidas cardíacas nem por ondas celebrais. Somos humanos, permanecemos humanos enquanto estiver acesa em nós a esperança da alegria. Desfeita a esperança da alegria a vela se apaga e a vida perde o sentido.